Tenho duas filhas que estão com
oito e doze anos. Estão começando a encarar a complexidade do mundo. Tenho me
empenhado para que compreendam a idéia de paradoxo e o quanto podemos nos
afastar de nossas convicções quando cochilamos com relação a este conceito. E o
quanto é possível se tornar hipócrita.
O Brasil está polarizado, talvez
como nunca. Sou do time que acha o atual presidente a imagem em espelho da
anterior e produto deste contexto. Um paradoxo. Quanto mais um polo se move,
mais fortalece o outro em um movimento de ação e reação que ao fim e ao cabo
quem não esta em um desses barcos se sente nauseado. Como toda imagem em
espelho, alguns aspectos são idênticos como a maneira ideologizada de governar (“nós
contra eles”) enquanto outros opostos como o caráter, sendo que a ex presidente
representa o lado bom.
Cada pólo nutre uma ideologia
supostamente oposta a outra, mas que se encontram na disputa pelo poder. Tem
sido bastante difícil nestes tempos discutir políticas públicas, em especial
quanto à forma de remuneração e financiamento na saúde, mesmo com a vantagem da
literatura e as bases científicas terem muito conhecimento acumulado nesta área.
O que vale é como “meu pólo pensa” e não o que está publicado. Aliás, lê-se
muito pouco do que foi publicado. Estava falando sobre ideologia com um colega
médico e reclamava da dificuldade de focar no mérito das questões sem uma
discussão partidarizada. E a conversa acabou da seguinte forma:
“Colega: Mas o
que a esquerda tem reclamado é que não estamos criticando com mais energia as
políticas de saúde do governo atual
Eu: Pois é
exatamente isto que estou chamando de debate ideologizado. Se fossemos focar no
que o Ministério da Saúde publicou em 2019 teríamos que estar elogiando muito
mais. Você acha que tem que criticar as políticas de saúde mesmo que sejam
corretas por causa da orientação partidária ou por estar em desacordo com
outras áreas do governo? Todos perdemos com isso, o SUS perde com isso.”
Não votei no governo atual e não
votaria se fosse hoje. Mas o Ministério da Saúde publicou uma série de
portarias e tomou medidas que são motivo de celebração por quem defende
verdadeiramente o SUS, e não faz disso um business
pessoal. Como pode este governo misógino, que tem como símbolo arma de fogo,
ter publicado tantas políticas estruturantes para o SUS? Como pode?
O método científico exige
isenção. Hoje as políticas públicas podem seguir métodos considerados
científicos. Não é fácil ter que admitir que um governo com tantos problemas em
tantas áreas, em especial nos costumes, tenha acertado a mão justamente na área
em que atuamos. Vale a pena elencar os acertos:
- No novo organograma a atenção
primária passou a ter o status mais
elevado, de secretaria se equiparando aos hospitais, um pleito antigo e
politicamente difícil de executar
- Medida Provisória 890/2019 instituiu
o Programa Médicos pelo Brasil e a contratação de médicos de família via CLT e
não mais por bolsas como era o Mais Médicos
- Portaria 2979/2019 definiu o
financiamento por capitação ponderada por pessoa inscrita, ou seja, realmente
cuidada, além de pagamento por desempenho e ações estratégicas
- Portaria 3222/ 2019 instituiu o
pagamento por desempenho incluindo instrumentos consagrados como PCATool que
mede os atributos da atenção primária à saúde, o PDRQ 9 que mede a relação do
profissional como o usuário e o NPS que mede a satisfação.
- Portaria 3510/2019 definiu o
incentivo, previsto na portaria 2979, para equipes que tenham residência de
medicina de família e comunidade, dentre outras
A última grande mudança no
financiamento havia ocorrido em 1997 quando o Ministro Adib Jatene praticamente
enterrou o financiamento por consulta e passou a repassar para as cidades um
valor fixo chamado Piso de Atenção Básica (PAB) pela estimativa da população de
acordo com o IBGE, e um variável pela quantidade de equipes de saúde da
família. Foi um enorme salto. O atual governo está mantendo o direcionamento,
ou seja, o principal incentivo continua capitação (per capita) mas por pessoa
cadastrada corrigido por idade, ou seja crianças e idosos representam um valor
maior a ser repassado.
Esta é a forma de incentivo que
fez a fama do NHS inglês. No Brasil, até a portaria ser discutida, havia
aproximadamente 90 milhões de pessoas cadastradas mas o repasse era relativo a
140 milhões. O receio de que a mudança seja apenas para diminuir o repasse tem
sentido lógico mas a portaria deixa claro que qualquer eventual perda será
compensada em 2020, ou seja, nenhum município receberá menos do que recebeu em
2019 para que tenham tempo de se adaptarem.
Qual o sentido de quem cita o
sistema de saúde que adotou esta medida, incentivo por capitação por pessoa
inscrita, ser contra exatamente esta medida? Os argumentos tem sido do tipo
“funciona lá, mas não aqui”. São paradoxos cobertos de ideologia. Há mais
exemplos quando se analisa o comportamento da esquerda quando teve a
oportunidade de ser protagonista:
- o PT não assinou a constituição
de 1988
- a esquerda não apoiou na
primeira década a Estratégia Saúde da Família que foi uma política apartidária
feita por técnicos competentes, encampada pelo Adib Jatene e
depois expandida pelo Serra
- as prefeituras petistas frequentemente defenderam especialistas focais nas equipes de atenção primária
- as primeiras portarias que
incentivavam a residência de medicina de família e comunidade (3839/ 2010 e
4299/ 2010) foram publicadas no final de 2010 e revogadas logo nos primeiros
atos do governo que assumiu em 2011 e apenas agora, com a portaria 3510/2019, a
política pode ser retomada.
Foram oito anos praticamente
perdidos em termos de políticas estruturantes. Não houve interesse em mexer no
que realmente daria sustentabilidade e exigiria um maior desgaste político como
a residência médica mandatória regulando a formação pós graduada, que é a regra
nos países com sistemas públicos universais. Todas as fichas foram colocadas em
duas políticas que não tinham nem base científica nem sustentabilidade: Programa
da Melhoria do Acesso e da Qualidade (PMAQ) e Programa Mais Médicos pelo Brasil
(PMMB).
O PMAQ utilizou instrumentos não
validados e que eram modificados ano a ano impossibilitando uma avaliação
minimamente acurada. O Mais Médicos, importou de uma só vez 14000 profissionais
de um total de 40.000 equipes, ou seja, 35% da força de trabalho. Apesar dos
médicos cubanos serem na sua maioria bem treinados, a política em si desviou o
foco e o esforço da formação de médicos de família em território nacional e
passou a seguinte mensagem para os aparelhos formadores: “podem formar os
cirurgiões plásticos porque a questão da falta de médicos de família está
resolvida”.
Mas não estava porque uma hora os
médicos cubanos iriam embora. Era frágil por não começar pela formação e pela
regulação da residência. E nenhum país sério importa 35% da força de trabalho
de uma política estruturante de uma só vez. Para agravar, os médicos cubanos
vieram, por intermédio de uma empresa chamada Comercializadora de Serviços
Médicos Cubanos S.A. (http://www.smcsalud.cu/smc),
segundo noticiado por grandes veículos (http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2014/02/cubana-pede-r-149-mil-por-dano-moral-e-salarios-do-mais-medicos.html).
Esta empresa é estatal do ponto de vista
cubano mas privada sob o prisma brasileiro. Portando, o Mais Médicos pode ser
considerado a maior política de privatização da história do SUS. O ápice dos paradoxos.
Enfim, neste mundo paradoxal, os
militantes encontram os militares e um alimenta o outro numa ação simbiótica.
Quem quer se ver livre deste mundo polarizado tem por obrigação manter a
racionalidade. Todos somos seres políticos, mas não necessariamente
partidarizados. Qualquer demonstração de racionalidade, isenção ou concordância
com alguma política deste governo tem sido acusada pelos opositores de apoio
incondicional. É uma agressão não a uma pessoa, mas a própria tentativa de
racionalidade. Afinal, os opostos se atraem. Só resta uma alternativa: a
resistência.
Página da Comercializadora de
Serviços Médicos Cubanos S.A. (http://www.smcsalud.cu/smc)
acessada em 22/12/2019 com propaganda de cirurgia estética
Boa tarde Professor Gusso. Obrigado pela excelente matéria. Só um ponto a comentar. Achas que o atual governo é a imagem em espelho do anterior? Refiro-me ao anterior liderado pelo Presidente Temer. Não se referia ao grupo anterior liderando primeiramente por Lula e posteriormente por Dilma? Grande abraço.
ResponderExcluirDilma
ExcluirParabéns pela racionalidade... é muito cansativo essa polarização, fé em Deus que vamos avançar mais... até chegar ao caminho do meio. Feliz Natal!
ResponderExcluirGusso, obrigada por compartilhar suas reflexões. Tenho grande preocupação com relação a este 1 ano de ajuste para que o municípios não percam dinheiro com a capitação ponderada, tendo em vista as eleições municipais e as próprias características da descentralização do estado brasileiro. Acho que em 2021 um bomba vai estourar, a não ser que mantenhamos 25% de PAB (como em 2020) por mais tempo. Venho defendendo isso. Não há estudo que critique o PAB para suspendermos essa estratégia de financiamento dessa forma.
ResponderExcluirDe resto, o que critico na sua análise é justamente confundir esquerda com o PT. O governo do PT começou no campo da esquerda e saiu desse campo infelizmente. Mais por suas ações do que por seu discurso, o que leva à sua confusão e a de muitos. Então a polarização que você inclusive reforça tem premissas equivocadas, ao meu ver. Sei que temos espaço para debater se o PT é esquerda ou não, entretanto, sem dúvidas estamos vivendo um governo de ultra direita atrelada ao capital financista e não às necessidades da população (os erros do atual governo vão muito além dos costumes, erram profundamente na economia). Estamos assistindo o desfinanciamento aviltante do setor, a retirada de bilhões da saúde para fundo eleitoral, desabastecimento de vacinas e coisas do gênero. Não é possível apoiar.