terça-feira, 24 de dezembro de 2019

O SUS, o Paradoxo e a Ideologia


Tenho duas filhas que estão com oito e doze anos. Estão começando a encarar a complexidade do mundo. Tenho me empenhado para que compreendam a idéia de paradoxo e o quanto podemos nos afastar de nossas convicções quando cochilamos com relação a este conceito. E o quanto é possível se tornar hipócrita.

O Brasil está polarizado, talvez como nunca. Sou do time que acha o atual presidente a imagem em espelho da anterior e produto deste contexto. Um paradoxo. Quanto mais um polo se move, mais fortalece o outro em um movimento de ação e reação que ao fim e ao cabo quem não esta em um desses barcos se sente nauseado. Como toda imagem em espelho, alguns aspectos são idênticos como a maneira ideologizada de governar (“nós contra eles”) enquanto outros opostos como o caráter, sendo que a ex presidente representa o lado bom.

Cada pólo nutre uma ideologia supostamente oposta a outra, mas que se encontram na disputa pelo poder. Tem sido bastante difícil nestes tempos discutir políticas públicas, em especial quanto à forma de remuneração e financiamento na saúde, mesmo com a vantagem da literatura e as bases científicas terem muito conhecimento acumulado nesta área. O que vale é como “meu pólo pensa” e não o que está publicado. Aliás, lê-se muito pouco do que foi publicado. Estava falando sobre ideologia com um colega médico e reclamava da dificuldade de focar no mérito das questões sem uma discussão partidarizada. E a conversa acabou da seguinte forma:

“Colega: Mas o que a esquerda tem reclamado é que não estamos criticando com mais energia as políticas de saúde do governo atual
Eu: Pois é exatamente isto que estou chamando de debate ideologizado. Se fossemos focar no que o Ministério da Saúde publicou em 2019 teríamos que estar elogiando muito mais. Você acha que tem que criticar as políticas de saúde mesmo que sejam corretas por causa da orientação partidária ou por estar em desacordo com outras áreas do governo? Todos perdemos com isso, o SUS perde com isso.”

Não votei no governo atual e não votaria se fosse hoje. Mas o Ministério da Saúde publicou uma série de portarias e tomou medidas que são motivo de celebração por quem defende verdadeiramente o SUS, e não faz disso um business pessoal. Como pode este governo misógino, que tem como símbolo arma de fogo, ter publicado tantas políticas estruturantes para o SUS? Como pode?

O método científico exige isenção. Hoje as políticas públicas podem seguir métodos considerados científicos. Não é fácil ter que admitir que um governo com tantos problemas em tantas áreas, em especial nos costumes, tenha acertado a mão justamente na área em que atuamos. Vale a pena elencar os acertos:

- No novo organograma a atenção primária passou a ter o status mais elevado, de secretaria se equiparando aos hospitais, um pleito antigo e politicamente difícil de executar
- Medida Provisória 890/2019 instituiu o Programa Médicos pelo Brasil e a contratação de médicos de família via CLT e não mais por bolsas como era o Mais Médicos
- Portaria 2979/2019 definiu o financiamento por capitação ponderada por pessoa inscrita, ou seja, realmente cuidada, além de pagamento por desempenho e ações estratégicas
- Portaria 3222/ 2019 instituiu o pagamento por desempenho incluindo instrumentos consagrados como PCATool que mede os atributos da atenção primária à saúde, o PDRQ 9 que mede a relação do profissional como o usuário e o NPS que mede a satisfação.
- Portaria 3510/2019 definiu o incentivo, previsto na portaria 2979, para equipes que tenham residência de medicina de família e comunidade, dentre outras

A última grande mudança no financiamento havia ocorrido em 1997 quando o Ministro Adib Jatene praticamente enterrou o financiamento por consulta e passou a repassar para as cidades um valor fixo chamado Piso de Atenção Básica (PAB) pela estimativa da população de acordo com o IBGE, e um variável pela quantidade de equipes de saúde da família. Foi um enorme salto. O atual governo está mantendo o direcionamento, ou seja, o principal incentivo continua capitação (per capita) mas por pessoa cadastrada corrigido por idade, ou seja crianças e idosos representam um valor maior a ser repassado.

Esta é a forma de incentivo que fez a fama do NHS inglês. No Brasil, até a portaria ser discutida, havia aproximadamente 90 milhões de pessoas cadastradas mas o repasse era relativo a 140 milhões. O receio de que a mudança seja apenas para diminuir o repasse tem sentido lógico mas a portaria deixa claro que qualquer eventual perda será compensada em 2020, ou seja, nenhum município receberá menos do que recebeu em 2019 para que tenham tempo de se adaptarem.
Qual o sentido de quem cita o sistema de saúde que adotou esta medida, incentivo por capitação por pessoa inscrita, ser contra exatamente esta medida? Os argumentos tem sido do tipo “funciona lá, mas não aqui”. São paradoxos cobertos de ideologia. Há mais exemplos quando se analisa o comportamento da esquerda quando teve a oportunidade de ser protagonista:

- o PT não assinou a constituição de 1988
- a esquerda não apoiou na primeira década a Estratégia Saúde da Família que foi uma política apartidária feita por técnicos competentes, encampada pelo Adib Jatene e depois expandida pelo Serra
- as prefeituras petistas frequentemente defenderam especialistas focais nas equipes de atenção primária
- as primeiras portarias que incentivavam a residência de medicina de família e comunidade (3839/ 2010 e 4299/ 2010) foram publicadas no final de 2010 e revogadas logo nos primeiros atos do governo que assumiu em 2011 e apenas agora, com a portaria 3510/2019, a política pode ser retomada.

Foram oito anos praticamente perdidos em termos de políticas estruturantes. Não houve interesse em mexer no que realmente daria sustentabilidade e exigiria um maior desgaste político como a residência médica mandatória regulando a formação pós graduada, que é a regra nos países com sistemas públicos universais. Todas as fichas foram colocadas em duas políticas que não tinham nem base científica nem sustentabilidade: Programa da Melhoria do Acesso e da Qualidade (PMAQ) e Programa Mais Médicos pelo Brasil (PMMB).

O PMAQ utilizou instrumentos não validados e que eram modificados ano a ano impossibilitando uma avaliação minimamente acurada. O Mais Médicos, importou de uma só vez 14000 profissionais de um total de 40.000 equipes, ou seja, 35% da força de trabalho. Apesar dos médicos cubanos serem na sua maioria bem treinados, a política em si desviou o foco e o esforço da formação de médicos de família em território nacional e passou a seguinte mensagem para os aparelhos formadores: “podem formar os cirurgiões plásticos porque a questão da falta de médicos de família está resolvida”.

Mas não estava porque uma hora os médicos cubanos iriam embora. Era frágil por não começar pela formação e pela regulação da residência. E nenhum país sério importa 35% da força de trabalho de uma política estruturante de uma só vez. Para agravar, os médicos cubanos vieram, por intermédio de uma empresa chamada Comercializadora de Serviços Médicos Cubanos S.A. (http://www.smcsalud.cu/smc), segundo noticiado por grandes veículos (http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2014/02/cubana-pede-r-149-mil-por-dano-moral-e-salarios-do-mais-medicos.html).  Esta empresa é estatal do ponto de vista cubano mas privada sob o prisma brasileiro. Portando, o Mais Médicos pode ser considerado a maior política de privatização da história do SUS. O ápice dos paradoxos.

Enfim, neste mundo paradoxal, os militantes encontram os militares e um alimenta o outro numa ação simbiótica. Quem quer se ver livre deste mundo polarizado tem por obrigação manter a racionalidade. Todos somos seres políticos, mas não necessariamente partidarizados. Qualquer demonstração de racionalidade, isenção ou concordância com alguma política deste governo tem sido acusada pelos opositores de apoio incondicional. É uma agressão não a uma pessoa, mas a própria tentativa de racionalidade. Afinal, os opostos se atraem. Só resta uma alternativa: a resistência.


Página da Comercializadora de Serviços Médicos Cubanos S.A. (http://www.smcsalud.cu/smc) acessada em 22/12/2019 com propaganda de cirurgia estética