sábado, 26 de outubro de 2019

Reflexões sobre o Outubro Rosa


Gustavo Gusso

A campanha “Think Before You Pink” traz uma perspectiva pouco usual sobre o Outubro Rosa (https://www.thinkbeforeyoupink.org/). A mamografia é um exame de rastreamento, ou seja, é usado para detectar precocemente doenças ou lesões que podem se tornar malignas. Rastreamento é diferente de investigação clínica pois ocorre quando não há nenhum sintoma ou sinal do problema. Quando há um risco familiar aumentado mas não há sintomas, o exame também é chamado de rastreamento, porém para populações específicas.

Outro exame que pode ser usado como rastreamento é a glicemia, que mede a quantidade de açúcar e diagnostica diabetes. Existem milhares de exames que podem ser usados na detecção precoce de doenças, mas alguns são recomendados enquanto outros não. Por exemplo, não é recomendado que se faça periodicamente ressonância magnética para detecção precoce de câncer cerebral. Muita gente acha que o único motivo é o custo. Isto não é verdade. Na ciência muitas vezes o lado financeiro é o último fator a ser considerado mesmo com toda explosão dos custos em saúde. O principal fator é a relação benefício versus risco. Para se aprovar a recomendação de um exame de rastreamento, é necessário que o mesmo passe por diversos testes muito semelhantes a aprovação de um novo medicamento. O estudo mais comum usado nestes testes é o ensaio clinico randomizado. Ou seja, uma parte das pessoas sorteadas faz o exame e a outra parte não faz, depois se analisa como cada uma evoluiu ao longo dos anos. 

Como no caso dos medicamentos, é preciso sempre avaliar em cada pessoa os riscos e os benefícios da intervenção, no caso, fazer mamografia. O potencial benefício é mais claro: detectar precocemente um câncer, tratar e mudar o roteiro, fazendo com que a pessoa viva mais do que viveria se não tivesse feito a mamografia. Porém, pouco se fala dos riscos, mas existem essencialmente três tipos:

  • Falso positivo: quando o exame detectou uma lesão e não havia nada de fato, o que só pode ser confirmado com exames mais invasivos como biópsia
  • Sobrediagnóstico: há de fato a lesão mas ela não avançaria; só é possível ter conhecimento da existência do sobrediagnóstico estatisticamente, ou seja, comparando pessoas que passaram ou não por rastreamento e a incidência de mortalidade; quando se detecta mais porém a mortalidade não muda, o “excesso” de detecção é considerado sobrediagnóstico
  • Estresse emocional: é um desdobramento do falso positivo pois por um período, até confirmar que não se trata de uma lesão importante, ou mesmo que não há nenhuma alteração, a pessoa passa por um período de desequilíbrio por vivenciar um suposto diagnóstico de uma doença grave; também pode ocorrer com o sobrediagnóstico ao não ter certeza se aquele problema causaria de fato consequências para a saúde, tornando o processo de decisão do tratamento desgastante. 

Quando o exame é de fato recomendado? Quando o benefício supera o risco. Isso ocorre em poucas situações pois exige algumas condições como:

  • Problema frequente
  •  Exame suficientemente acurado para produzir pouco falso positivo
  •  Há tratamento disponível com alta taxa de sucesso
  •  A pessoa aceita passar pelo tratamento caso seja diagnosticada
  • Os estudos mostraram que o benefício supera o risco

Quanto menos frequente o problema, maior a chance de ter muito falso positivo e de não valer a pena o rastreamento populacional. Isso ocorre em mamografia antes dos 50 anos para mulheres de baixo risco, por exemplo, segundo os estudos. A periodicidade também é outro fator muito difícil de se decidir, dado que a quantidade de falso positivo, ou seja, de risco, se acumula. Há estudos mostrando, por exemplo, que se a mulher dos 50 aos 70 anos fizer mamografia com frequência maior que bienal, a chance de ter um falso positivo ao longo deste período e no acumulado dos exames passa de 50%. Por isso, a recomendação do Ministério da Saúde no Brasil, bem como da maioria dos organismos internacionais é uma vez a cada 2 anos dos 50 aos 70 ou 74 anos. Após os 74 anos há menos estudos e é possível que também os riscos superem os benefícios pois começa a haver uma chance da pessoa morrer por outra causa mesmo sendo portadora de pequenas lesões malignas, ou que o tratamento não muda o curso do problema sendo mais prejudicial se feito precocemente do que benéfico. Ou seja, em cada faixa etária, o mesmo exame tem um efeito diverso.

Por fim, o auto-exame tem mostrado nos estudos alta taxa de falso positivo, assustando desnecessariamente as mulheres. Portanto, passou a não ser mais recomendado de forma sistemática. Ao invés disso, a recomendação é do auto-toque (“breast awareness”), ou seja, que a mulher se conheça e se toque de forma cotidiana naturalmente e não para procurar uma doença especificamente.
Para ilustrar, um centro de pesquisa que estuda comunicação de riscos elaborou o gráfico que mostra os riscos e benefícios da mamografia na mulher acima dos 50 anos.  






Muita gente, inclusive profissionais da saúde, argumenta que "tem conhecido cada vez mais pessoas com menos de 50 anos com câncer de mama". As decisões são individuais e devem ser compartilhadas mas os dados precisam vir de estudos e não exclusivamente da experiência individual. Uma figura semelhante a esta deveria estampar os outdoors da campanha Outubro Rosa  para que cada mulher possa tomar uma decisão pessoal. É sempre importante explicar todos os lados e caso não seja possível comunicar toda esta complexidade em um cartaz, ainda não há nada melhor do que uma conversa com o médico de confiança. O ideal é que os exames de rastreamento e as recomendações de promoção à saúde sejam individualizados, ou seja, cada pessoa tem riscos específicos e o conjunto de orientações é único.
Refrências:

1. Welch HG, Schwartz L, Woloshin S. Overdiagnosed: Making People Sick in the Pursuit of Health. Beacon Press: Boston, 2011.
2. https://www.uspreventiveservicestaskforce.org/Page/Document/UpdateSummaryFinal/breast-cancer-screening1?ds=1&s=breast
3. https://www.inca.gov.br/tipos-de-cancer/cancer-de-mama
4. https://www.harding-center.mpg.de/en/fact-boxes/early-detection-of-cancer/breast-cancer-early-detection
5. Gøtzsche & Jørgensen. Cochrane Database Syst Rev 2013(6):CD001877.