domingo, 24 de novembro de 2019

Precisamos falar sobre vacinas

Quando se fala em "vacinas", uma marca (ou brand) secular, é preciso separar o joio do trigo. Poucas coisas se tornaram tão difíceis na medicina quanto entender as vacinas do ponto de vista epistemológico. Já não se trata mais de um conceito único. Algo similar ocorre com o termo "câncer" que é usado para tumores na pele, no pulmão ou no pâncreas, doenças claramente distintas quanto ao prognóstico e mesmo etiologia.

Hoje há pelo menos três diferentes conceitos usados para o mesmo termo "vacina". São eles:

1. vacinas terapêuticas: são as utilizadas em imunoterapia para determinadas alergias; embora na medicina se use principalmente o termo "imunoterapia", pois envolve mobilização do sistema imunológico, é comum também o termo "vacina para alergia"

2. vacinas com objetivo de proteção individual: a vacina contra gripe é a principal representante deste grupo; não há a priori o objetivo de bloqueio da circulação do vírus

3. vacinas que objetivam o bloqueio populacional como da polio, sendo que a mais debatida ultimamente é a do sarampo.

Vacinas se tornaram um excelente negócio pois as que objetivam proteção, em geral, tem como público alvo grandes populações. A vacina da gripe tem uma peculiaridade ainda mais atrativa do ponto de vista comercial: deve ser aplicada anualmente. Ou seja, como vacina, por ter que ser aplicada anualmente utilizando cepas do ano anterior, não é um produto muito efetivo. Porém, dificilmente há algo tão rentável quanto a vacina contra gripe, que, diga-se de passagem, é bastante questionada cientificamente, em especial para adultos saudáveis.

A distinção mais importante é entre as vacinas que tem um claro objetivo de bloqueio populacional e as que não tem esse objetivo ou ele ainda não está bem estabelecido. Poucas ações em saúde, e hoje são muitas que tem uma "base científica sólida", mobilizam tantos recursos, governos e famílias como vacinas que tem como princípio o bloqueio populacional. Para estas vacinas atingirem seu objetivo de impedirem a circulação do vírus é necessário que aproximadamente 95% da população seja imunizada. Isso significa que se uma pessoa não fizer a vacina pode prejudicar uma outra já que o vírus voltará a circular. Ou seja, é importante monitorar a "cobertura vacinal".

As vacinas cujo objetivo é a proteção individual funcionam como um "medicamento preventivo". Ou seja, a "cobertura vacinal" não tem a mesma importância mas quase sempre nas notícias fala-se também dela para estas outras vacinas, o que serve como uma propaganda gratuita. A "cobertura" vacinal é tão importante nas vacinas de proteção individual quanto para o controle de hipertensão, diabetes ou colesterol. Não deveria ser motivo de alarde mas sim de monitoramento apenas.

Algumas vacinas como HPV não demonstraram capacidade de bloqueio populacional ainda e seriam consideradas de proteção individual, mas podem demonstrar na medida que os estudos avançam. Já vacinas como da gripe podem ser necessárias como bloqueio para populações específicas como trabalhadores da saúde, mesmo assim as evidências não são substanciais e é um dos tópicos mais polêmicos envolvendo o tema "vacinas".

A principal implicação de entender as especificidades das vacinas é poder se dedicar com maior ênfase àquelas que de fato necessitam de cobertura para exercerem a função de bloqueio como as vacinas contra sarampo e polio. Muito se tem discutido sobre as razões para os recentes surtos de sarampo em diversos países. Tem sido bastante comum culpar os "movimentos anti-vacina" e as "fake news" pela queda na cobertura vacinal, porém, não há muitas evidências científicas de que estas sejam sequer as principais causas. Há muitas outras hipóteses para serem testadas, algumas específicas da realidade nacional, por exemplo:

  • problema na migração e interoperabilidade dos dados acarretando sensação de queda na cobertura quando esta já era baixa
  • "custo de oportunidade" (faz-se uma ação e deixa-se de fazer outra) - com o aumento da quantidade de doses até os 10 anos, que praticamente dobrou de 1998 a 2018, além de todas as atividades preventivas, muitos cuidadores não conseguem se organizar e acabam privilegiando as ações mais divulgadas
  • a vacina contra o sarampo não garantiria imunidade "para o resto da vida" como se acreditava; esta hipótese tem acumulado cada vez mais evidências
  • fatores desconhecidos, intrínsecos a ecologia do vírus que provocaria um surto a cada 10 anos, aproximadamente
  • educação precária com baixa compreensão da importância das vacinas 
Vacinas que tem maior viés comercial por serem produzidas e vendidas pela indústria farmacêutica, como do HPV e da gripe, muitas vezes  recebem uma carga midiática maior sendo que nem sempre são as que comprovaram capacidade de bloqueio populacional. É fundamental investigar todas as hipóteses e compreender todas as facetas deste complexo problema como, por exemplo, a interação do fator "custo de oportunidade" com as eventuais "fake news". Ou seja, uma pessoa que está saturada de tantas ações preventivas seria mais suscetível a "fake news" do que outra com maior capacidade de se organizar para cumprir todas as tarefas sugeridas e embasadas em evidências. 

Um artigo emblemático demonstrou há alguns anos que um profissional pode gastar 7,5 das suas 8 horas diárias de trabalho apenas sugerindo ações preventivas que tenham base científica sem sequer escutar o paciente. Qual a dedicação e o custo para cumprir todas estas tarefas? Como diz o ditado, sempre há uma resposta simples e errada para um problema complexo. Achar que a culpa é apenas das "fake news" pode ser uma enorme "fake news" por si só. A incompreensão do problema em todas as suas dimensões leva a medidas apenas punitivas que em geral resultam da ignorância e desespero das autoridades sanitárias. Será que estamos próximos de uma nova revolta da vacina mais de 100 anos depois? Será que desta vez a "marca" vacina terá sua reputação arranhada por mau uso?